Fernando Dias Simões

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Bilinguismo jurídico em Macau

Ponto Final

Artigo de opinião no “Ponto Final” de 17 de Março, página 3.

Macau desempenha um papel único na promoção do intercâmbio cultural e económico entre a China continental e os países de língua portuguesa. Existe um consenso generalizado nos círculos políticos, empresariais e académicos de que Macau deve reforçar este papel. Em Janeiro um responsável do gabinete de ligação do Governo Popular Central em Macau referiu que as empresas chinesas necessitam desesperadamente de mais técnicos bilingues, nomeadamente juristas, para acompanhar o investimento chinês no Brasil e nos países africanos de língua portuguesa. Um delegado de Macau à Assembleia Popular Nacional referiu esta semana que Macau deve apostar de forma mais clara no apoio jurídico (consultadoria jurídica e tradução de documentos legais) de modo a reforçar o seu papel de plataforma entre a China e os países lusófonos. Este tipo de apelos não é novidade. Nos planos de acção aprovados nas reuniões ministeriais de 2010 e 2013 do Fórum Macau os Estados Membros propuseram-se analisar as vantagens comparativas de Macau no conhecimento dos sistemas jurídicos da China e dos países lusófonos; e promover Macau como local para a arbitragem de eventuais litígios resultantes do comércio sino-lusófono.

A primeira medida sublinha a importância do que pode ser designado por “familiaridade legal”. Devido ao seu passado histórico, o sistema jurídico de Macau foi profundamente inspirado pela tradição portuguesa, sendo claramente considerado um membro da “família do Direito Civil”. A maioria das regras e princípios são semelhantes ao Direito Português. Para além disso, estas regras foram elaboradas e publicadas em Português. A ligação profunda que existe entre o Direito e a linguagem é bem conhecida. O Direito é uma linguagem em si mesmo. Usar a mesma linguagem permite que as partes comuniquem de forma mais eficiente, seja num contexto legal ou não. Quando os profissionais do Direito se envolvem num diálogo, a linguagem que eles usam tem uma natureza técnica. Se eles não forem igualmente fluentes na língua que estão usando, há uma espécie de “dupla tradução” – as dificuldades que resultam do tecnicismo do discurso jurídico são agravadas pelas barreiras colocadas pela imprecisão linguística.

Por pertencerem ao mesmo sistema jurídico, os juristas de Macau estão mais familiarizados com os sistemas jurídicos do mundo lusófono que os juristas da China continental, mesmo que estes últimos falem português. Para além disso, alguns juristas macaenses – no caso de possuírem um bom domínio da língua chinesa – estão em condições privilegiadas para comunicarem adequadamente com os juristas chineses. Essa vantagem depende, é claro, de um elevado domínio de ambas as línguas; mas também de uma compreensão completa dos diferentes sistemas jurídicos lusófonos.

Os planos de acção também se referem às vantagens comparativas de Macau no conhecimento do sistema jurídico chinês. Neste caso a situação é um pouco diferente. Macau também tem uma vantagem comparativa no conhecimento do sistema legal chinês, mas por razões diferentes. Como Macau não pertence à família jurídica chinesa, em regra os juristas macaenses não estão familiarizados com esta. No entanto, se possuírem um bom domínio da língua chinesa, a comunicação e a aprendizagem serão mais fáceis. Para além disso, Macau tem fácil acesso a instituições jurídicas, académicas e judiciais do continente, facilitando a transferência de conhecimento. Os juristas macaenses, desde que tenham um bom domínio da língua chinesa, estão em condições privilegiadas para comunicarem adequadamente com os juristas chineses e ganhar experiência e know-how. Essa transferência de conhecimento jurídico é muito exigente, e na maioria dos casos será mais fácil recrutar juristas que estudaram no continente. Novamente, Macau está numa posição privilegiada para treinar ou identificar profissionais jurídicos familiarizados com o sistema legal chinês que sejam proficientes na língua portuguesa.

Se Macau não está em condições de executar esta tarefa (que, convém salientar, é uma exigente espécie de “dupla tradução”) com um nível aceitável de qualidade e eficiência, então quem está? De facto, quais são as alternativas? A China ou algum dos países lusófonos? Uma plataforma legal entre a China e os países de língua portuguesa exige profissionais qualificados que preencham duas importantes condições: o conhecimento jurídico e a proficiência linguística. Não é suficiente ter um bom domínio de ambas as línguas ou ter um razoável conhecimento dos dois sistemas jurídicos – é necessário combinar as duas qualidades (embora a última, por natureza, dependa da primeira). Para que Macau possa beneficiar do seu ponto de vista único é necessário conseguir esta mistura exigente: a preparação ou recrutamento de tradutores com conhecimentos jurídicos ou de juristas bilingues. Macau pode oferecer consultoria jurídica e serviços relacionados com o conhecimento dos sistemas jurídicos chinês e dos países de língua portuguesa. Este serviço pode revelar-se um recurso valioso para as empresas chinesas e lusófonas. Pode também oferecer ao território uma oportunidade de diversificar a sua economia e levar o seu papel de plataforma entre a China continental e o mundo lusófono para um outro nível.


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